Por Ronaldo Souza
Do que é capaz um homem com “graves distúrbios psicológicos” quando se sente acuado?
Um homem com “graves distúrbios psicológicos” é a definição sobre Jair Bolsonaro que consta no relatório de sua expulsão do Exército Brasileiro.
Além de “canalha, covarde e contrabandista“.
Quem pode imaginar o que um homem assim é capaz de fazer?
Saber que isso não foi dito por uma hiena e sim pelo Exército Brasileiro deve ajudar a entender a dimensão e o alcance disso.
Não deveria ser, portanto, nenhuma surpresa o comportamento do presidente da república, comportamento desde sempre evidente nos seus gestos, palavras e ações.
Diferentemente do ditado popular que diz que “o poder corrompe o homem”, digo há muito tempo que o poder mostra o homem.
Assim, em absolutamente nada pode parecer estranha a absurda insanidade do presidente da república nesses últimos tempos.
É muito comum ouvir-se dizer que “fulano de tal mudou muito, quem diria que ele mudaria tanto…, cicrano é outra pessoa, completamente diferente…”.
A não ser talvez em situações bem específicas da vida, não ocorrem grandes mudanças na essência de uma pessoa.
O ser não se modifica assim.
As mudanças que experimentamos na vida são gradativas, proporcionadas por eventos como, por exemplo, o avançar da idade.
Com o passar dos anos desfila pela nossa mente e corpo uma série de eventos, reações, comportamentos, que nos fazem, por exemplo, querer ouvir música em volumes mais baixos, não somos mais tão tolerantes com algumas coisas e pessoas como éramos antes, como, por outro lado e aparentemente paradoxal, aprendemos a tolerar muitas outras.
Aprendemos também a querer e gostar de ficar mais a sós com nós mesmos, momentos que se traduzem em muita reflexão.
Alguém se percebe “de repente” lutando mais frequentemente e de forma mais decidida por coisas e causas que não pareciam fazer parte da sua vida.
Mas, ali, não é outra pessoa.
É a mesma, que foi continuamente incorporando vida à sua vida.
São mudanças gradativas que estão há algum tempo se incorporando, que podem nos fazer parecer outra pessoa.
Vamos lá.
Desde que o Brasil foi descoberto tem sido governado pelas classes dominantes.
Durante todo esse tempo, cinco séculos, em que das camadas mais inferiores do estrato social jamais saiu alguém para ocupar os mais altos cargos do país, particularmente a presidência da república, o país viveu sem grandes conflitos internos.
Em 2003, pela primeira vez, alguém com origem no seio do povo, um torneiro mecânico, semianalfabeto, foi eleito Presidente da República do Brasil.
É possível que muitos tenham imaginado que as elites do país pareciam concordar com aquilo.
Só pareciam.
Elites também não mudam a sua essência.
As nossas elites sempre foram e continuarão sendo isto que aí está.
Como diz Fernando Pessoa, “aristocratas de tanga de ouro”.
E então, como depois se manifestaria com violência jamais imaginada, o preconceito falou mais alto.
Em 2005, dois anos depois da eleição daquele torneiro mecânico, surgia o “maior escândalo de corrupção” do Brasil.
Começava ali, na verdade, a maior farsa do Brasil.
Farsa que culminou com o golpe e derrubada de uma presidenta e a prisão de um ex-presidente.
O maior da história desse país.
O presidente em cujo governo as elites jamais foram prejudicadas, pelo contrário.
Bancos e empresas jamais ganharam tanto dinheiro, reconhecido por todos eles, banqueiros e empresários.
Mas aquele presidente cometeu um grande pecado.
Condenado pela sua origem, ousou olhar para um povo que existia nas estatísticas, mas não na vida real, aquela que dá um mínimo de oportunidades e dignidade às pessoas, sejam elas quem forem.
Homens e mulheres do bem mostravam mais uma vez o lugar de cada um.
O recado estava dado.
Não ousem.
E ali estava o ovo da serpente.
Chocado.
Chocados também ficamos todos nós com o ovo chocado pelas “zelites” brasileiras.
Na sua composição clássica, comandados pela Globo, lá estavam Veja, Estadão, Folha, judiciário, ministério público, banqueiros, empresários e periferia.
Toda a periferia, eternos aspirantes às elites, onde se encontram profissionais liberais e, pasmem, professores.
Aquele núcleo da classe média tão bem definido por Marilena Chaui:
“Uma abominação política porque fascista, uma abominação ética porque violenta, e uma abominação cognitiva porque ignorante”.
O soldadinho de chumbo
O ovo foi finalmente chocado.
Acostumado com seu pequeno mundo, do qual, paradoxalmente, foi expulso com desonra, o novo presidente nos mostrou o seu universo.
Até então contido pelas paredes da sua inexpressiva existência como homem e político, aquele vazio enorme se abriu e se expôs aos nossos olhos.
Visão inesquecível, fez-se noite, as portas das trevas se abriram, a escuridão se embrenhou e se apossou das nossas vidas.
A serpente estava solta.
Com ela, os seus filhotes.
As evidentes carências afetivo/emocionais do presidente da república (“distúrbios psicológicos graves”) encontraram guarida nas evidentes carências afetivo/emocionais de parcela significativa da sociedade, algo tão claro quanto a luz do dia.
Quando o presidente deseja a morte de Lula e Dilma de câncer ou de qualquer outra maneira, quando ele fala em matar milhares de pessoas, como o fez em vários momentos da sua vida política, quando frequentemente elogia torturadores de forma escancarada, ele se torna espelho e reflexo desse segmento da sociedade que tem os mesmos desejos e os expressa diariamente nas redes sociais, essa imensa caixa de ressonância que se tornou válvula de escape das frustrações pessoais de todos eles, ainda que não tenham a menor noção disso.
Uma definição de transe diz “que é um estado alterado de consciência, um dos objetivos a serem atingidos pela hipnose. Trata-se de um estado de consciência onde podem ocorrer diversos eventos neuro-fisiológicos (anestesia, hipermnésia, amnésia, alucinações perceptivas, hiper sugestionabilidade etc)”.
Lembremos que transe também representa algo em transição de um estado a outro.
Distúrbios psicológicos representam um estado que nos faz ver as coisas com outra perspectiva.
Quando um homem atinge níveis assim, ele se vê sem limites.
Nada mudou no presidente do Brasil.
A sua essência é a mesma.
O comportamento dele é o mesmo, só que agora num plano maior, proporcional ao cargo que ocupa.
Maior poder ele alcançará quando atingir níveis ainda mais elevados de insanidade, o que se costuma chamar de loucura.
Aí então, ele se verá intocável.
Deus.
Acima de tudo e de todos.