A estupidez não é novidade no Brasil, temos uma história de ódio e violência
que vai longe. A novidade é a estupidez com acesso às redes sociais
Por Ronaldo Souza
Essa entrevista de Luis Fernando Veríssimo está sensacional.
Brilhante como sempre, a sutileza dele chega a níveis inalcançáveis (seria inalcanssáveis? Por favor, liga aí e pergunta ao ministro da educação) para a reserva selvagem do deprimente da república (segundo Fraga, jornalista gaúcho e um dos entrevistadores, o primeiro à esquerda na imagem aí embaixo).
Tentei trazer só as questões principais, mas como ficou difícil “deixar” alguma coisa terminei trazendo quase toda ela. Como sei que “eles” não vão ler (tem mais de cinco linhas e aí eles nem tocam) e se lessem não iam “pegar” nada mesmo, fiquei mais tranquilo.
Como diz a apresentação (logo abaixo), Veríssimo aceitou dar a entrevista em nome do combate à estupidez.
E como disse o próprio Veríssimo em outra entrevista há cerca de 3 semanas, combater a estupidez desanima.
Realmente, o estágio em que se encontra a estupidez no país é altamente desanimador.
Veja a apresentação feita pelo próprio Brasil de Fato e em seguida a deliciosa entrevista.
Por que o maior cronista brasileiro vivo aceitou esta entrevista? Não oferecemos grana nem glória – que glória, aliás, poderíamos oferecer a quem acaba de ter o romance O Clube dos Anjos traduzido para o mandarim? Aceitou pelo combate, o melhor deles, o combate à estupidez. Aí, deu no que deu: Luis Fernando Verissimo concedeu sua maior entrevista, tanto em número de perguntas como de respostas – para quem fala pouco, o homem fala pra chuchu. De quebra driblou, com brilho, não apenas o Bolsonaro como a malícia dos entrevistadores. Enfim, todos saímos ganhando, exceto o governo. Governo? Pobre palavra, como tantas outras, nas mãos dos brilhantes ustras da incomunicação.

‘O nosso lado está com a razão mas o lado deles está armado’
Ayrton Centeno – Lembro que, lá na virada do milênio, no auge do neoliberalismo, você disse que estávamos entrando em um novo século só não se sabia qual. E agora, já descobriu?
Luis Fernando Verissimo – A gente só conhece o futuro quando ele chega, e aí não é mais futuro, é presente, e irreversível. Quem diria que o século em que estávamos entrando, no Brasil, era o 19?
Ernani Ssó – Quando Bolsonaro disse I love you ao Trump não deveria estar vestido de rosa, conforme orientação da ministra Damares?
Verissimo – Dizem que o mais constrangedor foi o Bolsonaro pedir uma mecha do cabelo do Trump e oferecer, em troca, a Petrobras.
Fraga– Vamos supor o clássico clichê com o Bozonaro: que um dia ele fosse, de espontânea vontade, pruma ilha deserta. Que livros, discos e filmes tu achas que o deprimente da república levaria?
Verissimo – Gibis do Capitão América.
Ernani– Por falar em clichê, digamos que você, num desses acasos tão comuns nas anedotas, está em um elevador com o Bolsonaro, o Moro e o Guedes e a joça tranca entre dois andares. Você daria uma bolacha em cada um e depois alegaria escusável medo, surpresa ou violenta emoção?
Verissimo – O difícil seria decidir em quem bater primeiro. O Guedes não porque só ele sabe como fazer o elevador funcionar, ou diz que sabe mas não conta? O Moro porque nem registraria o golpe, continuaria com a mesma cara de “o que é que eu estou fazendo aqui?” e saudade de Curitiba? Ou o Bolsonaro por qualquer razão?
Schröder– No teu entendimento, qual o ministro realiza melhor o projeto de gestão intelectual e técnica anunciada pelo Bolsonaro?
Verissimo – A competição entre ministros e secretários de governo é grande e fica difícil escolher o pior. No momento a liderança está entre o novo chefe da Funarte, segundo o qual o rock leva ao satanismo, e a conselheira cultural que disse que dois minuto de sexo bastam para impregnar uma mulher e mais do que isso causa dependência e socialismo.
Centeno– Paulo Guedes declarou que os pobres não sabem poupar. Como mais da metade da população vive com até R$ 413 mensais, parece que o ministro da economia fez faculdade sempre colando na prova de matemática. Ou não?
Verissimo – Guedes tem razão. Se todos os pobres do Brasil poupassem seu dinheiro nossos problemas estariam resolvidos, sem necessidade de um ministro da Economia. Mas os pobres insistem em gastar seu dinheiro em supérfluos, como comida. Assim não dá.
Centeno– Tem gente que acha que Bolsonaro e sua trupe nos prestaram um serviço: destamparam a face mais estúpida, sórdida e violenta do país que nunca havia aflorado até então. Você acha que devemos dizer “Obrigado” para ele?
Verissimo – A estupidez não é novidade no Brasil, temos uma história de ódio e violência que vai longe. A novidade é a estupidez com acesso às redes sociais.
Centeno– A sociedade brasileira está, como nunca, polarizada. Amigos rompem relações, famílias se dividem. Pior é que pessoas que você pensava que conhecia, de repente, aparecem falando em terra plana e votando em Bolsonaro. Você viveu esta experiência?
Verissimo – Sei que já tem gente usando faixas na testa com os dizeres “Estou com o Bolsonaro”, “Sou contra o Bolsonaro” e “Não quero falar de política”, sem as quais nenhum tipo de vida social será possível.
Centeno– Voltando àquela outra questão: lembra daquele clássico B de ficção científica, Invasores de corpos, do Don Siegel? Aquele onde as pessoas, ao dormirem, são substituídas por vagens vindas do espaço e se transformam em cópias sem empatia alguma. Não lembra algo familiar?
Verissimo – Estamos nos transformando em vagens. Hmmm… De certa maneira é um futuro menos assustador do que a reeleição do Bolsonaro com o Alexandre Frota como vice.
Centeno– Durante muito tempo, nossas elites sentiram-se afrontadas por Marx, homem do século 19. Hoje, parece que se sentem afrontadas por Copérnico, homem do século 16, que comprovou que nosso planeta gira em torno do Sol. Qual será a próxima conclusão secular da ciência que iremos afrontar?
Verissimo – Dizem que Copérnico, Galileu, Darwin e todos os opositores do criacionismo serão banidos dos livros escolares brasileiros e substituídos pela nova teoria do evolucionismo militar, segundo a qual toda a raça humana começou como soldados rasos e foi subindo de grau.
Ernani– Todo governo mente, claro, mas o caso do reinado Bolsonaro é especial: os mentirosos não apenas mentem como parecem, eles próprios, acreditar nas mentiras que dizem…
Verissimo – No caso do Bolsonaro o rei não só está nu como desfila com uma radiografia computadorizada do seu interior, e mesmo assim poucos, curiosamente, gritam “Ele está nu!”
Centeno– “Agora é guerra” você escreveu recentemente sobre a loucura que estamos vivendo. O problema é que, do outro lado, estão as milícias…
Verissimo – O nosso lado está com a razão mas o lado deles está com os AK 154, certo. Mas lembrem-se que o David não precisou de mais do que um estilingue.
Fraga– Dá pra imaginar como são as reuniões do condomínio do Bozo, com ele presente? Qual seria uma pauta típica?
Verissimo – Discutiriam, certamente, a contratação de porteiros mais confiáveis.
Schröder– Entre o Cabo Anselmo, o Tenente Bolsonaro e o General da Banda, quem representa melhor a tradição militar brasileira?
Verissimo – Sem dúvida o General da Banda, que nos impede de desesperar por completo dos nossos militares.
Ernani– Naquela velha comédia One, two, three (no Brasil, como sempre, ganhou um título “criativo”: Cupido não tem bandeira) do Billy Wilder, um jovem acha justo que a humanidade seja varrida da terra. Então, o personagem do James Cagney responde: “Não se saiu tão mal uma espécie que deu o Taj Mahal, Shakespeare e a pasta de dentes com listinhas”. Bom, Bolsonaro não criou a estupidez que se vê do Oiapoque ao Chuí, apenas levou as pessoas a ostentarem ela na rua e baterem no peito com orgulho. A pergunta é: depois disso a espécie tem alguma defesa, apesar da pasta de dente com listinha?
Verissimo – Além de Shakespeare, do Taj Mahal e da pasta de dente com listinha eu teria uma enorme relação de justificativas para a passagem do homem sobre Terra, começando pelo pudim de laranja e terminando pelo Charlie Parker. A espécie não é culpada pelos seus dementes e torturadores.
Edgar Vasques – Como imagina que os historiadores descreverão este período que enfrentamos? Que começou em 2016 e virou demência em 2018. E qual o papel da mídia na abertura das portas do inferno?
Verissimo – A História terá dificuldade em entender o fenômeno Bolsonaro, mas talvez desenvolva uma lógica para explicá-lo. Para a História, o tempo acaba explicando até o ilógico. Quanto ao papel da mídia, não existe uma mídia só. Entre coniventes, subservientes, bem e mal-intencionados, heroicos e bandidos, tivemos de tudo. Acho que com o tempo a História também nos compreenderá.
Centeno– A propósito, o jornalista H. L. Mencken tinha uma definição implacável do jornal médio dos EUA. Diz que tinha “a inteligência de um carola caipira, a coragem de um rato, a imparcialidade de um fundamentalista, a informação de um porteiro de ginásio, o gosto de um criador de flores artificiais e a honra de um advogado de porta de cadeia”. E os nossos?
Verissimo – Mencken era um misantropo genial. O que ele pensava da espécie humana se multiplicava quando comentava a imprensa do seu país. Não sei se a nossa imprensa merece um rancor parecido. Ou talvez não mereça outra coisa.
Ernani– Bolsonaro quer transformar todas as escolas em escolas militares. Mas, considerando o nível intelectual do general Heleno, do general Mourão e do próprio Bolsonaro, não é de se pensar que a inteligência militar é uma contradição em termos, como dizia Gore Vidal?
Verissimo – Escolas militarizadas são a consequência natural do espírito que se instalou no país, com a eleição do Bolsonaro. Vamos ver qual será a primeira a receber o nome Coronel Ustra.
Centeno– Admitindo-se a hipótese criacionista – o que parece ser questão de tempo nas escolas públicas ou não – onde Deus errou ao criar o Brasil?
Verissimo – Deus criou um paradoxo, um país gigantesco e menor ao mesmo tempo.