Você ainda faz sondagem do canal?

Por Ronaldo Souza

O Fluminense, time de futebol do Rio de Janeiro, sempre foi tido como um time de elite.

Chico Buarque, Jô Soares, Hugo Carvana, Ivan Lins, Caio Blat, Paulo Gustavo, Bibi Ferreira, Lulu Santos, Fernanda Montenegro…, é infindável a lista de personalidades do mundo artístico/cultural que torce pelo Fluminense, também conhecido como pó de arroz.

Nessa lista, não poderia faltar Nelson Rodrigues, jornalista pernambucano radicado no Rio de Janeiro.

Apaixonado e conhecedor das coisas do futebol, é justamente desse brilhante torcedor do Fluminense, Nelson Rodrigues, um dos textos mais reveladores do perfil colonizado do brasileiro, que se tornou uma referência no nosso país: “Complexo de vira-latas”. Um texto que saiu do futebol e ganhou vida própria.

Originalmente escrito em 1958, antes da Copa do Mundo daquele ano, veja um pequeno trecho do que disse Nelson Rodrigues:

“Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol…” (leia o texto completo aqui https://www.ufrgs.br/cdrom/rodrigues03/rodrigues3.pdf).

Vivesse hoje, o criador da expressão “óbvio ululante” talvez viesse a constatar que esse perfil em nada mudou. Pelo contrário, parece ter piorado.

Por sua vez, Ariano Suassuna, paraibano radicado em Pernambuco e escritor de grande talento, louco por futebol (torcedor do Sport, de Recife), também não deixava por menos. Defensor ferrenho das coisas do Brasil, particularmente, da nossa língua, era outro conhecedor da alma do brasileiro, algo facilmente observado na sua obra.

Há, porém, entre outras, uma diferença marcante entre os dois, ele e Nelson Rodrigues; Suassuna era um tremendo gozador, um bem humorado gozador.

Em um dos seus vídeos, ele conta um episódio de riqueza ímpar em detalhes e ironia, das mais finas e cortantes, conseguindo de maneira irretocável aquilo que, possivelmente, nem Nelson Rodrigues (dono de estilo diametralmente oposto) seria capaz: fazer emergir, com toda sua força, o complexo de vira-latas.

Quantos naquele auditório, naquele momento ao vivo, e em “auditórios” do YouTube terão sido capazes de perceber que aquele paraibano estava, ao mesmo tempo, fazendo-os rir e rindo de muitos deles, por se verem diferenciados, como se via aquela mulher cujo horizonte era The Disney World, o mundo da fantasia?

Às gargalhadas do auditório, juntou-se o riso de Suassuna, surdo, silencioso, o riso que desnuda e zomba.

Ah, essa deliciosa sensação de diferença, de não igual, que nos eleva às nuvens e não nos deixa pisar na terra.

Esse pedestal que nos separa, nos distingue e nos faz tolos.

A linguagem “sofisticada”, de palavras estranhas, de outras gentes.

A pretensa distinção.

Less is more, just my two cents, better late than never…

As palavras entram pelas portas, saem pelas janelas, exibem-se nos corredores dos eventos, com tanta força e… invadem os auditórios tupiniquins. Chego a imaginar que Ariano Suassuna incorporaria ao catálogo da distinção: quem faz Endodontia em inglês e quem não faz.

Tip, taper, path finder, glide path…

É o novo querendo se impor, sem trazer novidade!

Quando se estabeleceu a “negociação” do canal, tradução literal de “negotiation“, foi a glória.

Confesso, não nego, que sinto falta do tempo (ontem) em que fazíamos exploração do canal, sondagem, coisas assim.

Fico imaginando a conversa entre dois cirurgiões cardiovasculares, diante da necessidade de um cateterismo no paciente; “tenho um glide path para agora, às dez“.

Oh my God!

It’s so sad!

Será que treinam antes para falar com a lingua entre os dentes?

Há, sim, elos perdidos na Endodontia.

E não são poucos!