Zezinho

Haddad criança'

Por Ronaldo Souza

Esse menino só anda sujo, parece que joga bola o dia todo. Ah, meu Deus, por que ele
não é igual a Zezinho, que só anda de banho tomado, limpinho, arrumadinho…”

Quantas e quantas vezes ouvi isso de minha mãe ao chegar em casa todo sujo do baba (pelada para quem não é baiano), algo que muitas vezes fazia mais de uma vez por dia, todos os dias.

Zezinho era, de fato, assim.

Acho que já na pré-adolescência não tinha mais como não notar; Zezinho deixava bem claro que era homossexual.

Aliás, Zezinho não era homossexual; era viado. Afinal, era assim que chamávamos de forma pejorativa a todos que apresentavam “aquele” comportamento.

Dá para imaginar o quanto Zezinho deve ter sofrido por ser “daquele” jeito, naquela época, numa cidade do interior?

No entanto, olhando para trás, imagino hoje que Zezinho, a quem não vejo há muitos anos e não reconheceria se visse, não deve ter sofrido muito, como geralmente sofrem alguns homossexuais (muitos, maioria? Não sei) pela opção sexual que fizeram.

Inocência, pureza, personalidade forte? Não faço a menor ideia.

Mas, ao olhar para trás só consigo me lembrar de Zezinho feliz.

Quantas vezes ‘provoquei’ minha mãe dizendo; “a senhora ainda quer que eu seja como Zezinho?”

Certamente, nenhuma mãe queria.

Certamente, nenhuma mãe quer.

Começa pelo estigma.

O homossexual é um ser cruel e covardemente estigmatizado pela sociedade e nenhuma mãe quer ver seus filhos sofrerem, ainda mais nos níveis que sofrem quando a razão é essa.

Mas, é ela, a mãe, ser supremo de amor que, mesmo sofrendo muito, até pelas dificuldades impostas pela tradição cultural que reina nas famílias, entre amigos, vizinhos, todos, costuma ser a primeira a acolher seu filho ou sua filha.

Ela, mais que qualquer outra pessoa, sabe o quanto eles sofrerão pelo resto da vida.

O pai costuma vir em seguida nesse processo. Os homens apresentam dificuldade muito maior para a aceitação das diferenças, que fazem parte da vida, queiramos ou não, gostemos ou não.

Pelo tanto que já andamos, quando deveríamos estar mais propensos a conviver melhor com as diferenças, não é isso que ocorre.

Regredimos.

Diferentemente da situação de Zezinho, hoje tudo mudou.

Nos dias atuais, abomina-se a homossexualidade com violência absurda, estimulada pelo preconceito e ódio que hoje circulam em todos os ambientes, particularmente nas redes sociais.

Dessa corrente de estupidez e da sua disseminação de forma contundente fazem parte muitos pais e mães.

Que pena.

Quantas vezes já aconteceu de alguns terem em casa, sem saber, filho ou filha homossexual, que se escondem do mundo real porque veem nos seus próprios pais “inimigos” aos quais não querem magoar.

Renunciam à vida em nome do amor a eles.

Como deve ser torturante!

Hoje são comuns os relatos de pessoas que apontam para o insuportável sofrimento que é viver assim; “escondendo-se” no seu mundo particular.

Esses sofrem mais ainda.

Essas pessoas não têm o direito de viver.

Paradoxalmente, vivem uma vida de aparente aceitação pela sociedade e ao mesmo tempo cheia de gestos e ações ofensivas e agressivas.

À tortura psicológica diária, agora incorporaram o risco de vida.

Como viver assim?

Como conviver com isso?

Hoje, ainda que me traga grande desconforto e me faça mal, estou me vacinando contra a estupidez e não me manifesto.

Calo-me.

E me afasto.

Sim, pode me recriminar pelo que você julga ser uma omissão.

É que estou cansado e lhe peço que entenda e respeite o meu cansaço.

É possível que você me acompanhe através dos meus textos. Se é assim, deve ter percebido que não deixo de lutar, mas também preciso me proteger.

Fique certo de que dói, e não é pouco.

Viver socialmente é violentar-se todos os dias.

De que adiantaria eu perguntar:

Será que vocês não percebem a gravidade desse momento?

De tão evidente, será que realmente não percebem?

E aí eu lhe pergunto.

O que mais posso dizer ou fazer?

Entende o meu cansaço?

Abro um parêntese, recorrendo a um texto que escrevi e postei em abril de 2016, Sonhos não morrem.

“Já falei sobre Dito aqui mesmo em um texto sobre o Natal.

Negro, pobre, muito pobre, vizinho e maior amigo da minha infância em Juazeiro (BA).

É como se eu a estivesse vendo agora, aqui, na minha frente.

Segunda casa à direita da minha, a de Dito não tinha sanitário.

Era “lá atrás” no fundo do quintal, com um muro de meia altura na frente.

Fazia-se ali.

Àquela época Papai Noel já me conhecia, mas não conhecia Dito.

Nunca foram apresentados”.

Já na minha infância, convivi com a pobreza e, no caso de Dito, em níveis profundos.

Nos babas que relato acima, era ele que ia comigo. Só chegávamos depois do horário do jantar e, como disse, imundos.

Foram anos assim.

Jogando bola sujos, imundos e… felizes.

Uma das coisas inesquecíveis da minha vida envolveu, além de mim, meu pai e Dito. Se você desejar, pode ler aqui Natal.

É possível que por querer tanto bem a Dito (foi simplesmente o meu melhor amigo na infância), eu tenha aprendido desde cedo a ver a pobreza com outros olhos, respeitando-a e vendo a grandeza que muitas vezes existe nela.

Zezinho também existiu na minha infância (não sei se ainda está vivo. Dito morreu afogado ainda muito jovem), mas nem de perto com a mesma intensidade que Dito, cujo nome era Espedito.

O nome de Zezinho, porém, não era esse.

Diferentemente de Dito, por razões que me parecem importantes, talvez fosse uma exposição desnecessária traze-lo “identificado” para o meu texto. Era outro o seu apelido, também um diminutivo advindo do próprio nome, mas que foi trocado neste texto. Voltei a vê-lo em raríssimas oportunidades nas vezes em que voltei à minha cidade e há muitos anos não tenho notícias dele.

Hoje o vejo como também uma pessoa importante na minha vida, que contribuiu para o meu desenvolvimento como homem, como ser humano.

Por que o trouxe aqui?

Como tantas outras pessoas que vieram ao meu encontro e enriqueceram minha vida, ambos, Dito e Zezinho, fizeram parte desses encontros, cada um com o seu peso, cada um com a sua importância, cada um com sua influência.

Todos ajudaram na construção do homem que sou.

A morte de Dito me trouxe muita tristeza e recordações de uma infância plena que me deu o lastro dessa construção.

Ao ver nascer o dia de hoje, 12 de outubro, dia da padroeira do Brasil, dia das crianças, veio-me à mente Zezinho.

Que certamente viveu muitos dias das crianças cercado do amor e do carinho dos seus pais, como eu vivi, como Dito viveu, como você viveu, como deve ter vivido a criança da foto lá em cima.

Estou aqui, conversando com você.

Dito, infelizmente, teve morte trágica.

Como disse, não sei se Zezinho ainda está vivo, mas teve direito à vida.

A vida me ensinou a lutar pela vida de todos.

“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
John Donne

Hoje, dia das crianças, veio-me à mente uma dúvida cruel, que certamente aterroriza o coração de muitas mães e pais do Brasil.

Quantos outros Zezinhos terão, como nós tivemos, o direito de viver uma vida plena de agora em diante nesse país?

https://www.youtube.com/watch?v=eDlNP8bTfmE